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A bola de capotão


Recordar o passado é reviver momentos de alegria, de tristeza, de dor, de esperança e de vitórias. Também é o momento para revivermos grandes ensinamentos que burilaram nossas vidas e formaram nosso caráter que nos estabelece no seio da comunidade. A vida em todas as suas nuances mostra para todos nós o caminho da felicidade e da realização pessoal; às vezes seguimos seus “conselhos” e vivemos bem, às vezes não acreditamos nos ensinamentos e podemos pagar por isso. A humildade é uma destas lições que as vezes não compreendemos bem, mas que é sobremaneira essencial para nossa existência. Com certeza a humildade é lição que se aprende com exemplos inesperados...


Naquele natal finalmente ganhamos de presente uma bola de capotão. Era a bola oficial dos atletas profissionais e sonho de todos os meninos que gostavam do futebol. Uma câmara de ar que se enchia com uma bomba de pneu de bicicleta coberta com revestimento de couro com suas partes costuradas a mão. Pronto! Era a bola oficial. Aquela utilizada nos grandes jogos futebolísticos e, portanto, desejo da molecada. Mas a bola era cara e papai, com 6 filhos, optava por brinquedos mais baratos e todo Natal deixávamos nossos sapatinhos embaixo da árvore de natal para no dia seguinte encontrar um revólver de espoleta ou um caminhãozinho. “Tudo bem” pensávamos, mas papai Noel devia ter esquecido mais uma vez de nosso pedido. A frustração acontecia, mas logo passava pois o coração da criança não guarda mágoas e logo já estávamos brincando com o presentinho que havíamos ganho. Até que naquele Natal ganhamos a tão esperada e tão famosa bola de capotão! Alegria imensa pois esperávamos há muito aquele presente e nem suspeitávamos recebe-lo naquele ano até porque nem tínhamos ido muito bem na escola.


Pela manhã saímos à rua para brincar pois nosso campo de futebol era a calçada em frente de casa. Morávamos no centro, na principal avenida da cidade que acabara de ser asfaltada. Mamãe lá da cozinha já nos gritou: “cuidado, não chutem a bola na rua”. Os moleques da vizinhança vieram ver nossa bola de capotão e desfilamos orgulhosos com ela para causar mesmo inveja na garotada. Agora eles estavam ali nos bajulando e esperando serem chamados para disputar a pelada. Formamos os times que eram três para cada lado e deixamos de fora o Luizinho que era bem pobre e que trazia na mão uma bola de meia que servira tanto em nossos folguedos, mas agora estava desdenhada por todos. Ela e seu dono.


O jogo começou e Jamilson, o mais forte de todos, deu um chute na bola de capotão que foi parar no meio da avenida. O goleiro partiu para busca-la, mas de repente, uma camionete em alta velocidade passou por cima dela e só ouvimos o estouro da câmara de ar e vimos a bola esmagada no chão. Desespero geral! Meu irmão já queria partir para cima do Jamilson e eu chorava copiosamente. Os meninos, atônitos, não sabiam o que fazer. Então Luizinho, que tinha ficado fora do jogo, humildemente propôs colocar sua bola de meia dentro do invólucro de couro que agora estava imprestável num canto da calçada. Assim fizemos e voltamos a ter a bola; embora não pulasse, mas isto não importava pois o capotão estava ali para ser chutado. Evidentemente convidamos Luizinho para o jogo, mas ele declinou porque para entrar Jamilson teria que sair e ele não queria fazer isto com o amigo. Continuamos então a partida que só parou quando fomos chamados para o almoço. Fomos então devolver a bola de meia para seu dono que não a aceitou dizendo que ela era muito mais útil dentro do capotão.


Hoje, recordando tantas coisas do passado vem à minha memória este episódio da minha infância que me ensinou o valor da humildade e do senso de fraternidade que devemos ter. Verdadeira lição de cidadania. Soube a alguns dias que Luizinho morreu e ao rememorar esta história infantil sinto aqui no meu coração que ele está em um bom lugar!


(*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras

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