
Vejo ao passar pela rua, numa dessas madrugadas, um cão abrindo sacos de plástico que acondicionam lixos à espera do caminhão que, antes do dia amanhecer, vem busca-los para dar a eles o destino estabelecido. Não consigo ver exatamente a cor do animalzinho, não sei se amarelo ou cinza, mas vejo que está magro, com as costelas aparecendo e se lança com avidez contra o lixo na expectativa de encontrar algo para comer, algo que lhe sacie a fome. Quando não encontra nada em um saco já avança sobre outro na inconsistente tentativa de amenizar aquilo que lhe está “matando”. A dor da fome deve ser algo brutal...Privilegiado, ainda não tive esta experiência na vida mas o dia a dia e vivendo em um país como o nosso onde 30 milhões de pessoas se encontram na linha da pobreza absoluta fica quase palpável para nós esta sensação terrível da dor no estômago, a sensação de vazio nas vísceras, o suor frio que escorre da nuca e empapa a camisa, o limiar da perda dos sentidos e, principalmente, a completa certeza de que a vida se esvai no vácuo do alimento que não foi digerido. Esta dor com absoluta certeza talvez seja a pior dor que podemos sentir porque ela não só dói mas nos dá também a sensação de menos valia, ou seja, a sensação de que não somos nada, não valemos nada, ninguém se preocupa com nossa vida e, realmente, não podemos viver.
Ligo a televisão na tarde de sábado e vejo um vídeo da ONG “Médicos sem Fronteiras” solicitando ajuda para atender e amenizar a fome de milhares de crianças na África cujas imagens caquéticas apresentadas no filme nos enchem de muita compaixão e, intimamente, de revolta pelo absurdo que isto representa para nós humanos. Crianças morrem na Venezuela por desidratação e fome e há países que tem política de controle da natalidade para evitar este flagelo.
Aqui no Brasil os estados do nordeste apresentam um quadro dantesco deste sofrimento e vi, quando estive em Belém do Pará, crianças bem pequeninas esmolando nas esquinas das avenidas pedindo algo para lhes sanar a fome. Em nossas pequenas cidades, aqui na cidade em que vivo, existem pessoas carentes necessitando de nossa ajuda, da possibilidade de um prato de comida.
Sei muito bem que vencer a fome depende de políticas públicas de inclusão social, na maior parte das vezes esquecidas por nossos governantes, depende de melhores oportunidades para nossos trabalhadores, depende de uma melhor distribuição de renda e de uma visão mais humanística de nossos semelhantes. Depende evidentemente de cada um de nós se dispor a sair do conforto de nosso casulo de bem estar e agir concretamente em prol dos menos favorecidos. A caridade é o melhor caminho para encontrarmos a face de Deus.
O cãozinho que revirava lixo foi socorrido pela ONG protetora dos animais e, adotado, vive hoje muito bem não lhe faltando a ração todo dia. E nossos irmãos e nossas crianças o que podemos fazer por elas? Pergunta que não quer calar e que deve estar presente em nossos corações...
(*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras