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A Sentinela Avançada


Os portugueses foram os últimos a chegar com grande alvoroço. A Maria Fumaça resfolegando e soltando fagulhas por todos os lados trouxe um magote deles. Vieram para Perobal como madeireiros para explorar a enorme quantidade de madeiras nobres que existiam nas matas ainda virgens da região. Os índios coroados já estavam “domesticados”, usavam calção e bebiam cachaça nos grandes barracões da companhia construtora da ferrovia, eram mão de obra barata e, como conheciam toda a floresta, sabiam e indicavam os locais onde os catetos e os veados iam beber água e ficavam à mercê das espingardas dos caçadores. O feitor da companhia adorava uma carne de caça e era agraciado por todos com a iguaria. No entanto entre os índios havia um que se sentia incomodado com a matança dos animais. Era o velho Quicó Cabreuva que se opusera à chegada dos homens mas que fora vencido pelas ordens do cacique Caigangue que se mostrou simpático aos brancos e principalmente aos seus presentes. Quicó não se manifestou pois hierarquia era hierarquia e durante algum tempo permaneceu escondido na mata procurando viver longe dos invasores. A noite, principalmente nas de lua nova quando a claridade iluminava as veredas, o índio se aproximava dos barracões e ficava a ouvir os gritos e as cantorias dos operários da ferrovia que se embriagavam e se divertiam com as mulheres que vinham acompanhando os homens e com as índias que por ali ficavam. Quicó sentia dor e ódio envolver seu coração...Subia então a colina e sentava-se ao pé da enorme figueira onde dormiam as araras e dali avistava ao longe as luzes do arraial que, célere, se formava. Tinha a esperança de que tudo aquilo iria passar e que a tranquilidade voltaria a reinar naquele rincão de matas fechadas e rios caudalosos. Ficava ali como uma sentinela avançada guardando a mata e os animais que nela viviam...O velho índio amava os animais! Tinha enorme afinidade com os pássaros. Araras, tucanos, arapongas, rolinhas, maritacas costumavam vir comer em suas mãos e os catetos, as capivaras, as antas e os macacos não se assustavam com sua presença. Até a onça pintada mantinha com ele uma distância respeitosa.


Um dia, ao entardecer, Quicó, encontrou, em um córrego onde os veados costumavam ir beber água, uma mulher. Ela era loira, tinha a pele clara, os olhos verdes e cantava com uma voz suave e delicada uma música que ele não conhecia. Ao vê-lo não mostrou medo e, ao contrário, o chamou para perto de si. Então o índio sentiu de repente um arrepio delicioso pelo corpo que jamais sentira e a paixão invadiu todo o seu ser de uma maneira profunda e definitiva. Chamou-a de Tinga que em Tupi Guarani significa branca e passou a viver com ela em sua choupana. Graças a Tinga e por causa dela começou a frequentar os barracões e os armazéns da companhia e conheceu a pinga. Depois de Tinga era da aguardente que Quicó mais gostava...Existem pessoas que não têm limites e o índio era assim. Todos os dias bebia até cair e ficava jogado pelos cantos até a carraspana passar. Tinga se cansou e começou a se entregar ao português Joaquim Tercio abandonando o relacionamento com Quicó. De início ele nem percebeu mas o tempo foi passando e, nas poucas vezes de lucidez, via a sua loira conversando com aquele homem de quase dois metros de altura. Isto não lhe trazia nenhum mal estar porque Quicó não possuía o sentimento de posse e só saía do sério se alguém tirasse sua pinga ou judiasse de algum animalzinho da floresta na sua frente.


Foi numa tarde de domingo. Havia chovido e a terra molhada trazia um perfume de relva e frutas maduras que pareciam embriagar a todos. As araras em algazarra comiam coquinhos e ali, em volta da grande figueira, Quicó ressonava enquanto catetos pastavam tranquilamente. De repente ouve-se o barulho de tiros e risadas bem próximas. O índio acorda e vê a alguns metros o português e sua Tinga atirando nas araras que caíam da palmeira e tinham suas penas arrancadas com brutalidade pelo casal. Dentro de seu ser Quicó Cabreuva sente crescer uma onda indomável de ódio que vai latejando em suas artérias e se acumula em seu cérebro. Sem raciocinar direito pega sua borduna e avança para o casal atingindo a cabeça da mulher que cai ensanguentada. O índio balança o corpo entre assustado e indeciso e, quando se volta, recebe uma punhalada de Joaquim Tercio que expõe todo seu intestino. Com dor senta-se na sombra da figueira e ali fica observando o homem se afastando levando sua Tinga nos braços. Um torpor doce e inusitado vai tomando conta de todo seu ser e ele vê ao seu redor que sua floresta está voltando com suas perobas, cedros e jequitibás, com seu verde e seus animais. Uma arara azul vem pousar em seu ombro exatamente no momento em que exala o último suspiro.


O tempo passou e o arraial cresceu, veio o café e o algodão, o gado de corte e a cana de açúcar, mudou de nome e se transformou numa bela cidade que leva o nome de um presidente da república e onde uma população ordeira, fraterna e trabalhadora escreve sua história.


Dizem que nas noites de lua nova lá no pé da figueira que continua esguia e grandiosa na mesma colina aparece a figura de um velho índio com uma arara azul no ombro, verdadeira sentinela avançada da terra abençoada.


OBS : Em homenagem à minha querida Presidente Venceslau que aniversaria nesta semana republico este conto que foi o primeiro colocado em recente concurso de crônicas e contos promovido pela SEMEC de nossa cidade. Parabéns terra querida!


(*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras

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