
Sentei-me ao seu lado após a consulta que foi breve. Dona Páscoa, aos 93 anos, totalmente lucida, se queixava da dor nos joelhos que dificultavam seu caminhar e rejeitava definitivamente o andador que podia lhe ajudar. No varandão do fundo da casa vi o quintal enorme que se estendia até os muros do vizinho dos fundos. Ali, ela me disse, havia muitos pés de frutas: figo, goiaba, pinha, tangerina, laranja lima, manga espada; havia uma horta com rúcula, alface, pimentão, chuchu e pimenta, havia até um pouco de milho que todo ano ela plantava para ter o curau, a pamonha e o fubá. Até a pouco tempo ela ainda mantinha o terreno limpo e rastelado... E era só o que queria! Poder andar e trabalhar um pouco. Não, não adiantou eu dizer a ela que agora precisava descansar e que os filhos, netos e bisnetos cuidariam disto. Não, o que dona Páscoa queria era tão pouco. Só queria trabalhar.
A italianinha chegou ao Brasil aos 12 anos vindo da região de Padova porque os pais, em busca de vida melhor, vieram trabalhar na lavoura de café, primeiro em Penápolis e, logo depois, em Presidente Venceslau, uma cidade muito nova, que tinha se desmembrado de Santo Anastácio, e onde, assim que a madeira começou a diminuir, se iniciava a cultura do café. Foram residir em uma casinha de madeira próxima da serraria do Lameirão e, desde aquela época, a menina já trabalhava, primeiro em casa, ajudando a cuidar dos irmãos menores e depois, quando fez 15 anos, na lavoura, ajudando o pai e os irmãos mais velhos na lida dos cafezais. Aos 17 anos casou-se com o Beppo e passaram a morar, como era costume, no mesmo terreno da família, onde construíram seu ranchinho. Dona Páscoa teve 6 filhos, todos de parto normal, em casa, sob os cuidados da parteira já que médico, naquela época, era muito raro. Criou todos no seio e também com o leite das cabras que criava soltas nas ruas pastando a vontade nos terrenos baldios e à margem da linha férrea. A noitinha os animais voltavam para casa e logo de manhãzinha eram ordenhados pela mulher e o leite forte alimentava a todos e podia alimentar também o filho do vizinho cuja mãe, coitada, morrera no parto. Aos domingos iam para a missa e, quando chovia, tiravam os sapatos por causa do barro e lavavam os pés na porta da igreja antes de adentrar na casa de Deus. Na época das quermesses viviam os melhores momentos da vida e participavam sempre. As crianças amavam lembrou-se ela.
Páscoa ficou viúva ainda moça pois Beppo, inveterado bebedor de cachaça, teve cirrose e faleceu ictérico e com uma enorme barriga. Sozinha criou os 6 filhos.
A mulher trabalhou no café, no algodão, na plantação e colheita de melão, depois foi contratada pelo frigorífico onde se aposentou como magarefe de primeira linha. Criou todos os filhos e, principalmente, deu a eles a possibilidade do estudo e de uma vida muito melhor. Agora tem a felicidade de ver uma neta se formando em medicina e espera estar viva para pegar nos braços uma bisnetinha que está para nascer.
Sentado na varanda da sua casa me senti pequenino diante da grandiosidade e do exemplo de vida daquela senhora e fiz a ela o mais sincero dos elogios.
Ela me olhou nos olhos com ternura, esboçou um leve sorriso e me disse: “doutor, do fundo do meu coração, só queria mesmo é poder trabalhar’!
(*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras