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O circo chegou


No passado, na minha adolescência, os moradores das pequenas cidades, como a minha, tinham poucas opções de lazer. Não havia televisão nem internet e, assim, as famílias a noitinha se reuniam na calçada em frente de casa e ficavam um tempo a contar histórias enquanto as crianças brincavam. O rádio ligado o dia inteiro trazia as melodias que todos conheciam e cantavam e, aos finais de semana, o cinema nos reunia e vivíamos as aventuras e romances das telas.


Mas havia um acontecimento que tomava por completo a vida da cidade, as emoções das pessoas, os sonhos dos jovens, a alegria das crianças e, então, toda a comunidade se transformava. Era a chegada do circo! Nossa! O circo chegou!


Haviam circos grandes e famosos com nomes sofisticados e que ficavam poucos dias na cidade e obrigavam a todos o enorme sacrifício de juntar o dinheiro para ir ver o espetáculo. Eram circos que, na época, traziam animais como leões e elefantes, trapezistas, sensacionais malabaristas e mágicos e tinham uma lona gigantesca com arquibancadas perfeitas, cadeiras próximas à pista para os mais abastados e até camarotes. O apresentador falava com imponência, com voz empolada, às vezes arrastando um “portunhol” e os números e artistas apresentados eram “os melhores do mundo”. Lembro-me bem deles... “Gran Circo de Moscou, Circo de Roma, Circo Irmãos Romanov, Circo Garcia" quando apareciam transformavam nossas vidas e sonhávamos com eles, queríamos ser artistas. Haviam também os circos pequenos e pobres com lonas desbotadas e picadeiro pequeno que apresentavam números de malabares e que investiam principalmente nos palhaços que faziam todos gargalhar; estes ficavam um pouco mais de tempo e assim muitos dos seus integrantes acabavam fazendo amizades na cidade e traziam ilusões para os jovens que aspiravam seguir a carreira circense pois consideravam que era uma vida maravilhosa. Doraci era uma destas pessoas. Menina linda e humilde numa bela madrugada fugiu com o trapezista do circo para viver seu sonho. Anos depois a encontrei envelhecida pela rua da cidade e ela pode me contar a vida de enormes sacrifícios e penúria pela qual passou. Trabalhava 15 horas por dia e pouco tempo depois foi abandonada e passou a viver com enorme dificuldade até conseguir regressar para casa.


Nós, meninos, tentávamos ser equilibristas e não conseguíamos, pendurávamos no galho da goiabeira brincando de trapézio e, as vezes, a queda nos levava ao hospital. Nossos dias, após as aulas, eram tomados pelas brincadeiras que diziam respeito aos espetáculos circenses. As mulheres amavam assistir as pequenas encenações que alguns circos apresentavam; eram peças românticas, tristes, chorosas mas que sempre terminavam bem. Uma delas “Mamãe Dolores” repetida centenas de vezes e por vários circos sempre era vista por multidões e arrancava lágrimas das senhoras.


O circo teve importância fundamental na vida citadina no século passado. Nos trouxe novidades dos grandes centros, distribuiu alegria a todos e, numa época de pouco lazer, era o momento mágico que fazia nos esquecer da luta diária pela vida e sonhar com um mundo muito melhor. E isto é fundamental para a formação de nossa personalidade pois quem não consegue sonhar não consegue viver.


Hoje os circos estão em grande decadência, aliás, como os cinemas. A televisão, a internet, o”streaming” o celular são as grandes opções de lazer. Não há dúvidas. Avançamos muito. Mas o circo não pode morrer porque até hoje traz na nossa velhice aqui muito no íntimo de nossa alma o desejo de ser um dia um artista circense. E este sentimento mágico nos faz a vida mais leve! E isto é fundamental.


O circo chegou! Viva o circo! (*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras

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