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O gato amarelo


Conheceram-se por acaso no elevador. Eram vizinhas de apartamento, mas nunca tinham se visto. O edifício em que moravam era enorme e composto em cada andar por dezenas de apartamentos tipo quarto e sala. Situado no centro da cidade atendia bem aos interesses de pessoas, na maioria solitárias, que trabalhavam por perto e assim tinham acesso fácil a suas casas. Alice morava sozinha há muitos anos. Solteira convicta, professora universitária de história preferia se envolver com livros a se envolver com seres humanos.


Aos 40 anos, trabalhando em sua tese sobre Luiz Carlos Prestes, Alice não tinha o menor interesse em fazer amizades. Mas naquela manhã, aguardando o elevador, viu aquela senhora velhinha saindo do apartamento em frente e, sem saber explicar simpatizou-se com ela. A mulher se vestia com simplicidade: um casaco marrom sobre blusa branca, saia cinza comprida e sapatos de saltinho baixo; os olhos esverdeados se sobressaiam junto à tez muito pálida, o que dava a impressão a Alice de que estava a ver um anjo. Lembrou-se da infância, da avó materna que tinha origem alemã, era clara e a tratava com muito carinho. A velhinha lhe sorriu um sorriso límpido e disse se chamar Herta (puxa! Nome germânico como a vó!). Contou-lhe também que morava sozinha desde que enviuvara e por fim convidou-lhe a visitá-la nos próximos dias.


AH! Não! Pensou Alice. Não queria envolvimento com ninguém! Muito menos com uma anciã que lembrava a avó.


Novembro chegou com rapidez, embora para as pessoas solitárias o tempo não parece passar. Agora Alice prepara sua monografia para o exame de mestrado. A campainha da porta lhe tira do devaneio em que se encontra quase que vislumbrando, ao escrever, o sofrimento de Prestes nas masmorras da ditadura getulista. Ao abrir a porta encontra Herta sorrindo e a convidando para um chá em seu apartamento. Alice não consegue se esquivar do convite, e pouco depois se encontra em uma saleta bem decorada sentada em uma mesa posta com biscoitos, torradas, chás variados e geleias. Então, pela primeira vez vê o gato. O bichano encontra-se esparramado no sofá. É um gato amarelo com olhos esverdeados, no escuro quase violetas, um pouco gordinho (lembrou-se de Garfield) que a analisa com certa curiosidade. “Chama-se Gelbe Katze” diz Herta notando seu interesse, “o meu melhor amigo, meu companheiro e meu confidente”! Então contou que a tinha convidado para o chá porque precisava lhe pedir um grande favor. Iria fazer uma longa viagem nos próximos dias e poderia demorar um pouco para regressar. Queria então que ela cuidasse e alimentasse o gato de estimação. Oh! Não! Não posso pensou Alice. Mas como negar um pedido a uma senhorinha tão agradável. Aceitou fazer o favor e recebeu da vizinha a chave do apartamento. Ao abraçá-la na despedida teve a impressão de que ela estava mais pálida e até um pouco febril, todavia a preocupação com a monografia fez com que não valorizasse pequenos detalhes.


O inicio do relacionamento com Gelbe foi conturbado. No primeiro dia Alice entrou no pequeno apartamento, abriu as janelas para arejar o ambiente, foi até o armário da cozinha, colocou a ração e a água nos recipientes e chamou o bichano. Silêncio. Procurou o animal pela casa e não o viu. Preocupada chamou novamente. Então levou grande susto quando ele saltou de uma estante e quis atacá-la. Saiu rapidamente do local e trancou a porta. Pensou em desistir da tarefa, porém não poderia deixar o bichinho à mingua. Dia após dia voltava para alimentar o animal e, aos poucos, percebeu que ele se aproximava. Começou a levar os livros e trabalhos para o apartamento da vizinha e Gelbe passou a ser uma companhia constante. Lia alto a tese, explicava tudo ao animal e parecia que ele entendia e participava de tal maneira que foi se tornando essencial para seus estudos e suas conveniências. Nos últimos tempos Alice já não conseguia viver sem o gato amarelo.


Dizem que os gatos são animais solitários e que não se prendem aos donos; se apegam muito mais à casa, ao seu habitat, do que ao ser humano que lhes alimenta. No entanto Gelbe era diferente. Vivia esperando a volta de Herta. Toda a tarde sentava-se no mesmo lugar do sofá e permanecia horas e horas olhando para a porta, esperando a dona. Dormia também sempre no mesmo cantinho da poltrona onde a velhinha lhe fazia cafuné.


Alice estava apreensiva. Há alguns dias vinha notando diferenças na conduta do bichano. Quase não se aproximava mais dela e, de repente, parou de comer. Ficava pelos cantos com um miado sentido que mais parecia um lamento... E ela, agora, amava aquele animal. Herta desaparecera na tal viagem há três meses e ninguém dava noticias dela. Decidiu que na próxima segunda feira iria procurá-la.


O domingo chegou cinzento, chuvoso e Alice resolveu ficar um pouco mais na cama. Assistiu à missa na Rede Vida e se enrolou nas cobertas para cochilar. Então a campainha tocou. Foi um toque estridente e demorado assustando-a. Achou que poderia ser Herta e isto lhe trouxe um misto de alegria e expectativa. Ao abrir a porta encontrou uma mulher ainda jovem e desconhecida que a observava por trás de óculos com lentes grossas. “Bom dia” disse a mulher e se identificou: “Sou Maria sobrinha neta da dona Herta e trago más notícias. Minha tia que estava com câncer não suportou a quimioterapia e faleceu há dois dias” (Meu Deus e eu nem sabia! Pensou Alice.). Como única herdeira vim buscar seus pertences e, como sei que lhe prestou favores e está com a chave do apartamento, quero lhe doar aquilo que você quiser e escolher de lá para que eu dê destino ao resto”.


Nossa! Não quero absolutamente nada! Nem conhecia a mulher direito... Mas, lembrou-se do gato. E pensou que ele poderia ser para sempre o seu amigo e confidente. “Quero apenas o Gelbe” pensou e disse isto para Maria. Não houve a menor resistência ao pedido e isto encheu seu coração de alegria. Caminharam rapidamente para o apartamento vizinho, uma porque tinha pressa para resolver aquele impasse, a outra porque queria se apossar do animal.


A pouca luz do ambiente fechado cegou Alice no primeiro instante. Ela chamou o gato pelo nome e não obteve seu miado como resposta. Então caminhou em direção ao sofá, seu lugar de costume. De repente, um grito alucinante cortou o ar assustando Maria que procurava acender a luz. Era Alice que se ajoelhando junto ao gato o olhava estarrecida... Gelbe com os olhos esverdeados abertos e quase violetas estava morto. Acompanhara Herta em sua longa viagem.


(*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras

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