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O susto e o medo


Moleque é bicho danado dizia minha avó lá da sua cama enquanto aprontávamos a maior algazarra pelos corredores da velha casa. Acho que ela tinha total razão. Agora, recordando o passado, sinto em meu íntimo saudades da infância quando o tempo passava beijando nossos dias como a brisa e nossos sonhos se confundiam com a realidade como se a brincadeira nunca fosse acabar!


Naquela época não tínhamos televisão, nem videogames, nem mesmo celulares para preencher nossas horas de lazer. Estudávamos pela manhã, fazíamos as lições de casa a tarde e depois saíamos para a rua para brincar pelas calçadas até que mamãe nos chamasse para o jantar. Depois, já combinados com a turma, voltávamos para a frente de nossas casas para continuar as brincadeiras até que, lá pelas dez horas, o chamado do pai no portão nos levava para o banho e para a cama.


A turma era grande pois naquele tempo os casais tinham muitos filhos e assim, enquanto as meninas pulavam corda ou jogavam amarelinha na calçada nós, os meninos, jogávamos bola, brincávamos de esconde esconde, de salvo 123, de bétis, de birosca, de pião ou, sentados no meio fio, contávamos estórias uns para os outros; normalmente eram estórias de terror, de almas penadas, de crimes e de tudo que pudesse nos dar medo. Mais tarde, no quarto, queríamos dormir de luz acesa ou chamávamos mamãe para nos acompanhar até que o sono finalmente chegasse. A imaginação era fértil e nos esforçávamos para contar estórias cada vez mais horripilantes. Eu mesmo era craque nisto...


Naquelas férias de Julho o inverno estava intenso. As estações do ano eram bem definidas: verão era quente, ensolarado, era verão! Inverno era frio, dias cinzentos, era inverno! Mas naquela noite de férias a molecada, toda agasalhada, preferiu se sentar na esquina para conversar. Estávamos ali falando sobre monstros e crimes quando Jamilson, o mais forte da turma, o líder do grupo, resolveu propor que um, que seria sorteado, iria até o cemitério, que ficava a poucas quadras de nossas casas, e pregaria um prego em frente a um dos túmulos como prova de coragem; tirou do bolso do casacão que usava um martelo e um prego e ofereceu para a turma. Ninguém se aventurou. Neguinho disse que estava gripado e correu para casa, Luizinho do galo disse que tinha traumas e assim, um por um, fomos nos esquivando daquela proposta. Jamilson deu boas gargalhadas e nos chamou de “maricas”. Disse que ele iria mas cada um dos meninos teria que lhe dar cinco bolinhas de gude das mais bonitas e cinco figurinhas para completar seu álbum. Sem outra alternativa aceitamos. Fomos para a proximidade da necrópole e o nosso líder entrou devagar, demonstrando coragem, pelos portões do campo santo. Do lado de fora ficamos todos com muito medo esperando que Jamilson voltasse. O medo é um sentimento estranho: acelera nossos corações, nos deixa com a boca seca, com leve suor frio escorrendo pelas têmporas e qualquer pequeno ruído nos dá enorme susto. Assim estávamos nós naquele momento. Ouvimos o som do martelo batendo e, de repente, ouvimos gritos lancinantes e terríveis que o nosso amigo dava lá do escuro. Atordoados, assustados, saímos em desabalada carreira deixando para trás nossos pertences e sequer pensamos em socorrer o menino. Ao chegarmos na esquina encontramos seu Raimundo que era vigia do poço artesiano e estava indo para o serviço e, então, aos gritos contamos a ele desordenadamente que uma alma penada havia pego o Jamilson. O bom homem sorriu e com sua lanterna acesa nos convidou para voltarmos ao cemitério. Assim fizemos mas nos negamos a entrar nas alamedas do lugar. Seu Raimundo então, sozinho, adentrou o recinto e pouco depois nos trouxe o nosso líder, pálido, choroso, suado mas inteirinho! Nos explicou que ao pregar o prego em frente ao túmulo sem querer Jamilson tinha fixado junto a borda do seu casaco e, quando quis voltar depressa, se sentiu preso e o susto e o medo lhe fizeram gritar supondo que tinha sido agarrado por um dos que ali estavam. Naquelas férias de Julho não se falou mais de histórias de terror e Jamilson nem aceitou as bolas e figurinhas que tinha nos cobrado. Ficamos por ali quietos, sentados, vendo as meninas brincarem na calçada. Vovó tinha razão:” moleque é bicho danado”.


(*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras

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