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O velho galo Gumercindo


Naquele tempo todas as casas, mesmo as do centro da cidade, tinham grandes quintais onde, ao invés de piscinas e churrasqueiras, existiam muitas árvores frutíferas como goiabeiras, mangueiras, laranjeiras e até figueiras. Ah! E nestes quintais eram comuns também os galinheiros e as galinhas. Acima da praça que hoje leva o nome de um prefeito mas que a conhecemos como ‘praça do bosque’ em muitas casas haviam chiqueirinhos com porcos e, também, haviam muitas cabras que com seu leite forte ajudavam na criação da garotada. Hoje as criancinhas só conhecem ‘galinha pintadinha’ da TV e a neta de um amigo gritou de pavor quando, na chácara, uma franguinha veio em sua direção. Mas voltemos à história que quero contar. A nossa vizinha criava galinhas soltas pelo quintal e várias vezes elas saiam pela rua em busca de alimentos. Na frente de casa, na rua ainda de terra batida, nos reuníamos após os estudos para jogar o bets, um jogo feito com uma bola de borracha e dois tacos de madeira que podiam ser dois sarrafos de cerca comuns nos quintais de então; fazia-se 2 ‘casinhas’ de madeira com pequenos pauzinhos e duas duplas disputavam a partida. Uma dupla jogava a bolinha na tentativa de derrubar as ‘casinhas’ e uma, com os tacos, defendiam as ditas cujas sendo que ao rebater a bolinha para longe os dois jogadores com os tacos mudavam de lugar e ponteavam. Por incrível que pareça, nestes dias, vi num site foto dos equipamentos para este jogo que preenchia nossas tardes de folguedos e que nunca mais havia visto. Às vezes a bolinha caia no quintal das pessoas e a garotada ia busca-la. A vizinha que criava as galinhas tinha o hábito de dar nome aos galináceos. Assim a franguinha chamava-se belinha, a poedeira que cacarejava após a postura chamava-se fuxico e havia o enorme galo branco ‘legorne’ cujo nome, não sei porque, era Gumercindo. Ele chegara pintainho ainda naquelas caixas abarrotadas de pintinhos que se vendiam nas feiras e nas portas das casas, vindos de granjas distantes e eram comprados, tratados e depois, franguinhos, iam para a panela. Vovó dizia que aqueles franguinhos de granja não valiam nada pois a carne tinha pouco sabor e bom mesmo eram os frangos caipiras, saborosos e nutritivos. O fato é que o Gumercindo de pintinho virou um galo branco enorme e, pior, bravíssimo e dono do terreiro. Até os galos índios que tinham fama de valentões tinham medo e fugiam dele e ai daquele moleque que entrasse no quintal pois, invariavelmente, era atacado pelo legorne a bicadas e esporadas. Assim, quando a bolinha caia na vizinha poucos tinham coragem de ir busca-la. Luizinho, o caçula da turma, quando estava presente, era o escolhido e, embora temeroso, entrava correndo no terreiro e saia de lá voando com o danado do galo atrás. Então, empoleirado no portão, Gumercindo batia as asas e tinha um canto sonoro e prolongado de vitória e poder.


Naquele sábado o bets estava movimentado e, de repente, a bolinha foi cair lá no quintal da vizinha. O jogo parou e todos olharam para o Luizinho. O menino estava com o taco na mão e, sabendo que teria que ir buscar a bola, já correu para o portão e entrou nos domínios do velho galo. Pegou a bolinha e ao se voltar já viu a ave de asas abertas avançando para ele. Numa ação reflexa, mais de defesa do que de ataque, com o taco desferiu no galo uma pancada que o jogou longe e o bicho ficou rodopiando e pulando como se estivesse com o pescoço destroncado...Luizinho correu e na rua disse aos amigos ‘matei o Gumercindo’! Todos foram para suas casas pois sabiam que viriam as reclamações. Nada aconteceu...


No outro dia, como quem não quer nada, foram até o quintal onde ficava o galo. Lá estava ele comendo milho. Conversaram com sua dona. Tudo estava muito bem. Só uma coisa aconteceu: Gumercindo nunca mais cantou e, também, nunca mais atacou os meninos.


(*) O autor é medico e membro da Academia Venceslauense de Letras

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