Com G1
Uma câmera se aproxima de uma pessoa que está pedindo dinheiro para comprar alimentos em um supermercado. Quem está filmando pergunta: “Topa entrar e comprar tudo o que você quiser?”
A gravação acompanha o indivíduo selecionando, emocionado, os produtos nas prateleiras, e termina com ele agradecendo imensamente pelo auxílio.
📱Esse enredo, com variações, tem se multiplicado nas redes sociais. Os vídeos produzidos a partir de cenas como a descrita acima alcançam milhões de visualizações para os influencers que os produzem.
🌍 O fenômeno não acontece só no Brasil. Existem vídeos semelhantes em perfis do México, de Portugal e dos Estados Unidos. O maior youtuber do mundo, o americano Mr Beast, dedica uma seção de seu canal a ações do tipo e afirma já ter dado mais de 20 milhões de refeições a pessoas necessitadas. O youtuber também produz vídeos em que mostra doações de alto valor, como dar uma casa de gorjeta a um entregador de pizza.
Em uma versão brasileira, um influencer entregou, de presente, uma moto ao entregador.
'Quero que este gesto se multiplique', diz influenciador
Com a divulgação dos vídeos, os produtores de conteúdo dizem que querem influenciar positivamente quem assiste.
Perguntado sobre quanto já doou a terceiros, ele não revelou.
“Nunca me interessei em calcular esses valores, pois para mim o gesto de carinho e a ação solidária estão acima de tudo”.
Professor de educação física em Natal, Leandro Pessoa contou que inicialmente ajudava pessoas nas ruas sem filmar. Mas, ao registrar as ações e divulgar, passou a ver o impacto que causava. Ele afirma ter gastado mais de R$ 20 mil nos vídeos de ajuda, e que o dinheiro que ganha vem sobretudo das aulas que dá, e não da monetização nas redes.
Empresário e influencer de São Paulo que mescla os vídeos de ajuda com outros de culinária, Alex Granig afirmou já ter doado mais de R$ 100 mil – e outros R$ 500 mil por meio de vaquinhas virtuais que promove em seus canais.
"Hoje a minha renda é diversificada, tenho imóveis, ações, criptomoedas e diversos canais na internet, além do canal Alex Granig que é de ajudas sociais, sou criador de diversos canais como Nayara Granig (a mulher dele), Bruxinha das Receitas, entre outros em diversos idiomas", descreveu o influenciador.
" Idolatria, cancelamento... 'Tudo isso vira engajamento', diz psicanalista
“Minha intenção com os vídeos não é expor a vida de ninguém, mas sim ajudar e inspirar você que tá assistindo a fazer o bem pelo próximo também”, justificou-se, em uma postagem, o influenciador Emerson Falkevicz, conhecido como “Emerson Resolve”, de Mafra (SC).
Para o psicanalista e analista de cultura e comportamento Lucas Liedke, este formato de conteúdo, de fato, pode passar uma mensagem positiva, como a de "inspirar algumas pessoas a também fazerem doações para quem está em situação de vulnerabilidade" ou a de "se envolver em algum tipo de trabalho social”.
Contudo, há também quem critique a exposição dos beneficiados, em comentários nas próprias contas dos influenciadores.
“É um tipo de conteúdo que é alegre, mas é triste, parece correto, mas parece errado, e isso gera afetos conflitantes em quem está assistindo. Faz as pessoas quererem se posicionar contra ou a favor, gera discussão, desperta idolatria ou tentativas de cancelamento, e tudo isso vira engajamento [nas redes]”.
É permitido filmar essas pessoas sem consentimento?
A advogada Luciana Marin Ribas, doutora em direitos humanos pela USP, explica:
"Se você filma alguém e veicula sua imagem, é necessário ter autorização expressa dessa pessoa", explicou.
Os influencers que responderam à reportagem, Felipe Martins, Leandro Pessoa e Alex Granig, afirmam que solicitam a autorização de imagem de todas as pessoas que aparecem nos vídeos.
Emerson Falkevicz, Willian Braz, Iago Felipe e Derick Silverio não responderam aos questionamentos do g1.
Pegadinhas, sorteios e até exigência de ficar pelado
Os vídeos apresentam uma variedade de abordagens. Enquanto alguns influenciadores simplesmente documentam a doação, outros condicionam o auxílio a pegadinhas e jogos de alternativas. Veja abaixo:
🔴É o caso de Iago Felipe, que se denomina “Iago milionário” nas redes. Em um vídeo, ele diz a um menino em uma loja de brinquedos: “Se você não falar no microfone, eu compro o que você quiser. Entendeu a brincadeira?”. A criança, então, responde com gestos, "e ganha o direito de escolher os itens da loja.
🔴Em outra situação, o influenciador Willian Braz aborda uma idosa na rua e oferece: "Dez reais ou girar a roleta?". Na roleta, a senhora tem a chance de ganhar até R$ 150 ou não ganhar nada.
🔴Num outro vídeo, Derick Silvério desafia dois grupos a montar quebra-cabeças e realizar gincanas -- pelados. O prêmio final é de R$ 1 milhão de reais. “[Você] Se perdeu no conteúdo, mano, antes você ajudava as pessoas sem humilhar elas”, disse um seguidor em um comentário.
🔴Há ainda dois produtores de conteúdo, Emerson Falkevicz e Willian Braz, que promovem sorteios de carros de luxo como BMWs em suas páginas.
Esse tipo de sorteio precisa seguir regras:
deve ser autorizado pelo Ministério da Fazenda, e só pode ser feito por empresas ou organizações da sociedade civil, e não por pessoas físicas;
a venda de números só pode ser feita por instituições filantrópicas que queiram arrecadar fundos.
Os sorteios promovidos pelos dois influenciadores não informam a instituição que receberá o dinheiro ou o número de registro no governo federal.
O g1 perguntou ao Ministério da Fazenda se as empresas Emerson Falkevicz, ligada ao influenciador, e Lorenza Empreendimentos e Desenvolvimento Pessoal Ltda., apontada como organizadora dos concursos de William Braz, tinham autorização para a realização de promoções comerciais. A pasta negou.