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A cidade e as serestas


Nas décadas de 50 e 60 a nossa cidade era a cidade das serenatas. Aos fins de semana poetas e seresteiros, no início da madrugada, saíam pelas ruas e ao som de boa música acordavam os amigos e suas famílias, as lindas moças, as autoridades e as pessoas vizinhas com o som nostálgico e boêmio de seus violões, violinos e sanfonas. Após a seresta eram recebidos com alegria pelas pessoas e saboreavam um delicioso café com bolo de fubá. Quis relembrar este momento de nossa história e para retrata-lo procurei a pessoa certa. Liguei para o poeta, escritor, seresteiro e meu amigo Dr. Raimundo Farias de Oliveira que também é membro de nossa Academia Venceslauense de Letras. Aos 95 anos de idade nosso mestre se encontra perfeitamente lúcido e hígido e, com sua gentileza e bondade características me autorizou a colocar nesta crônica um texto que escreveu em 14 de Junho de 1995 em homenagem ao seresteiro e meu amigo pessoal Ismael Alves, o Ismael da Caixa Federal, falecido poucos dias antes. Ninguém melhor do que Raimundo para retratar a nossa cidade, seus seresteiros e nossas serestas! Aí vai o texto:


“O Silêncio do Violão”


- Há um violão silente na casa de Sônia.


Certamente ela e seus familiares estão contemplando o pinho que foi tão sonoro nas mãos de Ismael Alves e que, agora, se quedou no mais absoluto silêncio, depois de tantos anos recebendo o carinho dos seus dedos nos acordes de tantas emoções musicais; pinho que de tanto roçar o seu peito nas madrugadas enluaradas, diante de tantas venezianas da cidade, onde tantas silhuetas se desenharam como sombras sutis, conhecia e alimentava todos os segredos do seu coração; pinho que foi companheiro dileto nas horas tristes, irmão de solidão nas horas de saudade, agora este mesmo pinho seresteiro de Ismael repousa num silêncio misterioso, profundo, talvez chorando baixinho para a vizinhança não escutar. Ismael, meu amigo-irmão, sua partida encerra um comovente capítulo da história musical de Presidente Venceslau. Venceslau das serenatas, Venceslau romântica, sonhadora, poética, Venceslau dos violinos do Onofre e do Nico, do violão e da sanfona do Paulinho Lopes, dos violões do Amâncio Câmara e do Antônio Ribeiro, o violão do Zito, Venceslau das vozes de Dulce Poveda, Evaldo Galindo (Boro), Odorindo Perenha, Adail Miranda, Jamil Assad, Vanderley Penitente, Reginaldo Pizzo, Venceslau dos saraus musicais na casa do Pedrinho de dona Arminda, com aquele bife ao amanhecer do dia...


Ah, meu amigo Ismael, você foi um artista apaixonado pela Arte, boêmio no santo sentido da palavra; um boêmio que não consumia bebidas alcoólicas há muitos e muitos anos, mostrando, assim, aos desavisados, que é possível viver a arte e comungar as emoções da estética longe do flagelo do álcool.


Mas você, Ismael, não foi apenas o músico, o violonista, o seresteiro, o componente da Orquestra Colúmbia de Venceslau, você foi, acima de tudo, amigo dos seus amigos, entre os quais sempre me inclui honrosamente. Você marcou, com a força de sua simpatia, humildade e dedicação, a vida da Agência da Caixa Econômica Federal na cidade. Mas acima de tudo, você despediu-se desta vida cercado pelo carinho e respeito de sua querida família, e, sintomaticamente, na noite dos namorados, quando uma lua cheia, esplendorosa, iluminava a madrugada como o sublime castiçal dos amantes e dos seresteiros insones.


Não pude comparecer à serenata que Barbato, Zito e outros companheiros fizeram à beira de seu túmulo como última homenagem, mas estou pedindo mentalmente, a Rafael Rabelo, Zangão (lembra-se dele, lá de Epitácio?}, o Evandro do Bandolim, que recebam você lá em cima... Deus o guarde, irmão... 14/06/1995.


Com este verdadeiro poema de nosso querido “Raimundinho” espero estar realizando um homenagem e um preito de saudades a todos os seresteiros de nossa cidade!


(*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras

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