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A morte de um trabalhador

Atualizado: 21 de jun. de 2023



Aconteceu em tempos idos, início do século XX. Tempo de progresso minguado, tempo em que ainda se respeitavam os pertences alheios. Embora a covardia e o status quo ditassem comportamentos e atitudes.


Era um trabalho importante: entregava leite todos os dias, de casa em casa, em pequenas garrafas, de boca larga. É madrugada quando ele inicia o trabalho, suas garrafas não podem emitir ruídos, seus passos descalços não podem incomodar o sono dos homens de boa vontade, que dormem pesado após um dia de trabalho forte.


A cidade cresceu, o perigo aumentou, todos andam assustados; a qualquer hora, marginais agem na calada da noite e nas ruas vazias. O medo deixa todos em alerta! Está no imaginário das pessoas: “Ladrão se mata com tiro”!


Então, o moço que é leiteiro, que ninguém conhece, que ninguém nunca viu, toda madrugada, vem do distante subúrbio, carregado de garrafas, que não podem tilintar, corre, apressado distribuindo leite bom para gente boa e para gente ruim. Seus movimentos, apesar do cuidado, sinalizam aos senhores, no sono, que alguém acordou muito cedo e trouxe o melhor leite, da melhor vaca, para nutrir os corpos de poucos, tornando-os mais fortes para enfrentarem a brava luta da cidade grande.


É jovem, muito jovem, o ignaro leiteiro, morador da Rua das Cobras, subúrbio distante, empregado do entreposto, com a tarefa precípua de deixar na entrada das casas, a garrafa branca com o néctar da vida. Tem apenas 21 anos de idade, ama uma linda e brejeira menina, empregada doméstica; sonham casar-se e ter filhos; filhos saudáveis e honestos, que também poderão ganhar a vida entregando leite e limpando casas alheias. Ele tem pressa, há muitas garrafas de leite a entregar e precisa ser bem cedo, as pessoas não podem esperar.


Aproxima-se, o mais silenciosamente possível, da porta de cada casa e deposita, uma mercadoria apenas: o lácteo líquido. Há uma casa no fundo, é necessário adentrar o corredor, escuro e estreito, avança e deposita a garrafa, sem barulho, é claro, porque barulho nada resolve.


Seu passo leve e maneiro, mais desliza que marcha, mas, inesperadamente, um passo errado acontece: um vaso de flor no caminho, um gato quizilento e um cachorro, que põe-se a latir sem comedimento. Um senhor acorda e resmunga e torna a dormir. Mas, o vizinho não. Acorda em pânico: “Ladrões infestam o bairro”!


E rápido, não pensa em mais nada: o revólver da gaveta salta para sua mão: “Ladrão se mata com tiro”! Ouvem-se estampidos na madrugada: liquidaram nosso leiteiro. Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom, agora é tarde para saber!


O homem que fez o disparo, foge para a rua e em sua mente martela um pensamento: “Meu Deus, matei um inocente”! Claro como a luz da lua, entre nuvens espessas.


Correndo sorrateiramente pelos becos e ruas ainda vazias vai dizendo entredentes: “Quem quiser que chame o médico; a polícia não bota a mão neste filho de meu pai”! E corre, desesperado, desesperadamente, como nunca correra antes, até sentir-se a salvo, longe da rua em que mora, até que tudo se acalme. “Está salva a propriedade e a minha liberdade!”


A noite prossegue calma, a manhã custa a chegar, a luz começa a infiltrar-se, lentamente, pelas varandas e becos, e o leiteiro, estatelado, deitado ao relento, perdeu a pressa que tinha. Das garrafas estilhaçadas, no ladrilho, escorre um líquido espesso. É leite? É sangue?


Por entre objetos confusos, sacos de lixo amontoados, vasos de plantas enfileirados, o ambiente sendo permeado pelo aroma do café que emana das casas que se espreguiçam, duas cores escorrem, duas cores se procuram, duas cores se aproximam, suavemente se encontram, suavemente se tocam, languidamente se enlaçam, amorosamente se misturam, formando um terceiro tom, formando uma terceira cor a que chamamos aurora. O dia amanhece e a vida segue. E o status quo está preservado.


“Que país é esse onde as pessoas não podem ser iguais devido a suas classes sociais?” (Bob Marley - 1945 / 1981)


(*) Aldora Maia Veríssimo - Presidente da AVL

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