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Memórias de escola

Atualizado: 20 de jun. de 2023



Nestes tempos de inúmeras avaliações com as quais o Governo Estadual ou Federal pretendem, honestamente ou politicamente, aferir a tão decantada (não) qualidade do ensino no Brasil, a venerável professora de inúmeras gerações, cujos cabelos brancos remetem ao pó do giz, se vê transportada ao passado. Visualiza-se, ainda, uma jovem normalista que há pouco transitava pelas ruas da cidade “vestida de azul e branco / trazendo um sorriso franco / num rostinho encantador”, agora recém-formada, agarrando com as unhas da vocação sua primeira experiência no Magistério.


“Um jovem e promissor prefeito, carismático, mestre na arte da simpatia, embalado pelas ideias do momento, “determina” a seus funcionários um prazo limite para que todos passassem a receber seus salários mediante assinatura e não mais com a constrangedora impressão do polegar. Lembro-me, como se fosse ontem, a sala se compunha, predominantemente, de senhores de meia idade, com aparência simples, mãos rudes e grossas cujos calos denunciavam a dureza do trabalho do dia a dia.


Aparência cuidada para o primeiro dia de aula: camisas imaculadamente limpas como em dia de missa, sobre calças de tecido grosso, não tão asseadas, contrastavam com os pés calçados com chinelos de dedo ou alpargatas. Camisas xadrez, cuja falta de um botão era, às vezes, disfarçada pela “arrumação” displicente ou proposital que aberta ao peito deixava parte do tórax à mostra, costume da época, e que revelava corpos fortes, invariavelmente queimados pela exposição ao sol, cuja compleição física causaria inveja aos marombados de hoje.


Entrando na sala, postei-me à frente da lousa, vestida com graça e despojamento (vestido rosa com bolinhas brancas), já imaginando o que teria que enfrentar. Enganei-me. Nada do que imaginei se comprovou: meus alunos, todos, tinham mais idade do que eu; a sala de aula, apesar de bastante grande, subitamente encolhera devido aos enormes “aluninhos”, desajeitadamente acomodados em carteiras construídas para crianças, e que me olhavam com um misto de espanto e descrença: como alguém tão jovem poderia ensinar- -lhes algo?


Teorias, metodologias, treinamentos, tudo desabou no decorrer do tempo em que durou a primeira fase de alfabetização desse grupo de trabalhadores municipais. A diversidade de situações de aprendizagem – cada aluno estava em um nível, todos muito aquém do imaginável – era muito grande, fato complexo em se tratando de Educação! Todavia, tal obstáculo tornou-se menor diante das peculiaridades da situação: o cansaço provocado pela longa jornada diária de trabalho, os problemas particulares que deveriam ser esquecidos durante a aula, o sono que fazia descer as pálpebras e o peso da própria mão, acostumada ao peso das pás, enxadas e picaretas, não raro, durante algum tempo fez quebrar as pontas dos lápis e também os próprios lápis! Em pouco tempo percebi que, com alguns alunos, meu trabalho deveria ser diferenciado. Nas discussões de cunho social, conforme orientação que recebíamos nos treinamentos do MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização), apesar de tímidos, alguns se manifestavam com apuradíssimo senso de justiça, porém com total desconhecimento do próprio valor enquanto cidadãos. À maioria, só importava, realmente, aprender a traçar as letras do próprio nome, pois disso dependeria que continuassem a receber seus salários. Era o que acreditavam!


Inúmeras são as lembranças dessa minha primeira experiência no Magistério, mas nenhuma foi mais marcante do que o empenho do Senhor Clarindo, o aluno mais velho do grupo. Magro, alto, queimado de sol, com algumas falhas no cabelo e nos dentes, mãos grossas pelo trabalho duro, cuja figura me inspirava um respeito quase sagrado, a ponto de não conseguir controlar meu tremor, quando, num esforço maior, era necessário segurar sua mão para ajudá-lo a “desenhar” as primeiras letras. O sono e as mãos calejadas  estranhavam a delicadeza do lápis que apertava exageradamente deixando impressa, nas várias folhas subsequentes, a lição de cada dia.


As singularidades da situação levaram-me a ensinar-lhe letra por letra para ir compondo sílabas até chegar ao nome completo.


As circunstâncias físicas e sociais que delinearam sua história de vida dificultavam sua memorização: sempre era necessário retornar ao início e o progresso, às vezes, era interrompido por lapsos de memória que nos impunham um recomeço dolorido apesar de uma estratégia paralela de incentivo e muitos elogios a cada avanço. Mas, no limite do tempo determinado pelo prefeito, Clarindo sentiu-se capaz de assinar seu nome e assim garantir o recebimento de seu salário. “A tremedeira quase não me deixou assinar … e as lágrima então … quase não via o paperzinho do recibo…mas, quando acabei, meu peito quase arrebentou de orguio! Não sou mais um anarfabeto! Brigado Fessora, nunca vou me esquecer da sinhora! Que Deus lhe abençoe”. Emoção sincera acompanhada pelos companheiros de sala e por mim declaradamente “chorona”.


Que pena! Início de carreira e não fui uma boa professora! Seu Clarindo acreditava não ser mais um analfabeto! Ruim para mim, bom para os governantes que não se preocupam verdadeiramente com a qualidade da Educação! Por onde andará seu Clarindo? Não sei como conduziu sua vida após se tornar um “cidadão alfabetizado”, porque, então, a escola, para ele, perdera a motivação e ele debandou. Pela inexorabilidade do tempo, certamente já faleceu. Que Deus o tenha, “porque deles é o reino dos céus”.


(*) Aldora Maia Veríssimo – Presidente da AVL

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