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O desaparecimento da infância

Atualizado: 21 de jun. de 2023



Esse é o título de um artigo maravilhoso publicado pela Revista Veja nº 42, escrito com propriedade desconcertante pela competente psicóloga Rosely Sayão. Versa sobre os excessos que pais, mães e avós cometem em relação à convivência com as crianças nos tempos modernos. Desde a preocupação excessiva com a qualidade da escola desde muito cedo às inúmeras atividades que impingimos aos nossos pequenos: balé, natação, futebol, violão, teclado, piano, inglês, assim como a “adultização” nas roupas, acessórios e passeios. Celulares e tablets são instrumentos naturais nas mãos de nossas crianças, a qualquer hora e em qualquer lugar. O acesso ao computador, com difícil controle por parte dos pais ou responsáveis, dá às crianças um mergulho sem retorno em questões importantes, precocemente.


Ler esse texto me remeteu a uma obra bastante conhecida da Literatura internacional “Pollyanna” da escritora Eleanor H. Porter. Tendo perdido os pais, a menina Pollyanna vai morar com uma velha tia que lhe impõe uma rotina pesada: “De hoje em diante, vida nova! disse. De manhã, vai ler para mim em voz alta. À tarde, virá um professor de música. Duas vezes por semana terá aulas de costura e outras duas, de cozinha. No outono irá para a escola.” A menina, acostumada a uma vida mais livre retruca: “Mas... tia... não vai sobrar nenhum tempinho para eu viver? Viver é fazer as coisas que eu gosto: brincar, ler para mim mesma, conversar com as pessoas...” Esse livro foi publicado em 1913 e até hoje é sucesso. Já no início do século XX pecávamos ao sobrecarregar nossas crianças.


Educar as futuras gerações, sejam nossos filhos, alunos ou familiares sempre causa preocupações: Estamos agindo certo? Estamos exagerando? Precisamos prepará-los para a vida ou deixá-los viver, apenas?


Como todas as mães também presenteei meus filhos durante a infância e adolescência e vejo-me agora como avó, tomada por uma ansiedade maior em datas em que se faz necessário presentear meus novos amores. Há pouco passamos por isso: O que comprar? Será que eles vão gostar? O que eles ainda não têm? E o que tem me incomodado há algum tempo é que, para os menores, não há brinquedo propriamente dito. Se peço um carrinho, lá vem um com uma carroceria esburacada e dentro há pecinhas que se escolhidas acertadamente passarão facilmente pelos buracos. E as vendedoras dizem simpaticamente: “Assim ele vai aprendendo as formas e desenvolve o controle motor.” Alguns quebra-cabeças, além de encaixar as peças é preciso organizar os números. “Assim ele vai aprendendo os números.” Se quero um jogo de montar, apresentam-me uma novidade: “Este monta uma fazendinha, já tem até a cerquinha.” E se a criança quiser montar outra coisa, esse não servirá, pois direciona ou limita a brincadeira. E os carrinhos que de repente viram robôs! São uma coisa ou outra? E algumas crianças amam!


Quando a criança é maior, somos instados a adquirir “lindos carrinhos de controle remoto” e a criança, paradinha, aperta botões à distância, enquanto o carrinho corre sozinho; não se pode nem empurrá-lo com as mãozinhas, andando de joelhos como se fazia há algum tempo. “Ah, este é melhor! Ele pode entrar nele e dirigir, o volante e o freio funcionam.” Como essa “brincadeira” é elaborada pela criança? Já posso dirigir!!! Mas, e o carro do papai, serve pra quê?


Enfim, relembro com saudades minha infância ao lado de dois irmãos que se divertiam muito fazendo estradinhas na terra do quintal com direito a pequenas poças cheias de água e com carrinhos feitos de latas de sardinha vazias cuja tampa aberta era moldada por eles mesmos assemelhando uma cabine de caminhão e com rodinhas feitas com carreteis de linha cortados. A velha lata de leite em pó, cheia de terra, furada na tampa e no fundo, com um barbante passado, servia para ser puxada e desenvolvia uma sonora viagem pelas estradas muito bem construídas.


E assim a vida segue. Consumismo desenfreado no mundo infantil, criação de necessidades e desejos via manipulação da indústria de propagandas, lares cada vez com menos espaço para as crianças brincarem e a insegurança erguendo grades e chaveando portões impedindo a expansão dos horizontes recreativos, afetivos e sociais dos nossos pequenos. Se oferecemos muito e antecipamos fases corremos o risco de antecipar dores, sofrimentos e angústias para as quais, provavelmente a ciência ainda não esteja preparada para solucionar.


E o coração de quem ama incondicionalmente e a quem cabe educar e preparar, cresce em preocupação, em questionamentos e em insegurança quanto à qualidade da infância que estamos oferecendo aos que nos sucederão.


“Na infância... Bastava sol lá fora e o resto se resolvia.” (Fabrício Carpinejar)


(*) Aldora Maia Veríssimo - Presidente da AVL

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