top of page
Buscar

A atitude do Foca


Naquele entardecer de verão até o Foca desceu com a turma para a beira do riacho. Como sempre calor acentuado e chuvas torrenciais são constantes nesses meses e naquele dia, embora muito quente, um barrado negro já se apresentava no horizonte para os lados de Porto Novo do Cunha. A molecada ia à frente, correndo e fazendo brincadeiras, mas o Foca, por conta de sua obesidade, sempre ficava para traz. Era sempre assim. O apelido fora bem dado. Raulino (seu nome) era bem gordinho para sua idade e, aos quinze anos, já apresentava um buço que lembrava bem a cara do bicho marinho. Foi o Rui que inventou aquele apelido. O Rui era demais, mexia com todos, até com os professores e, quando lhe chamou de Foca pela primeira vez fez a turma toda rir muito e a reação dele, de insatisfação, pusera tudo a perder; a partir daquele momento passou a ser o Foca e pronto!


Lá iam à frente as três meninas e os dois rapazes, o Rui e o Custódio, e ele suado e esbaforido pelo esforço da caminhada aqui atrás a pensar: tinha pelo Rui um sentimento que não conseguia entender; às vezes o odiava e desejava vê-lo morto, às vezes, mesmo disfarçadamente, o admirava pela sua maneira alegre e espirituosa de viver e pelo sucesso que fazia com as meninas. Rui jogava futebol como ninguém e, puxa vida! Era o máximo! Tocava violão! Agora ele, coitado! Nem a camisa tirava, pois tinha os peitos grandes como de mulher, o médico dissera ser ginecomastia, e o pinto muito pequeno nem aparecia sob a barriga. Rui gozava muito com ele, mas o que não suportava era quando passava a mão em sua bunda e saia correndo latindo como cachorro. Rui cachorro! Um dia com coragem contou isto ao pai, mas, ducha de água fria, recebeu dele indiferença e desprezo. Detestava o pai!Imaginava que ele poderia ser melhor, mais amigo e companheiro, mas ele não queria.


O rio Aventureiro desce dos morros que circundam o vale do Paraíba do Sul e vem serpenteando pelas baixadas passando pelas inúmeras vilas que ali se formaram há muito tempo. Em Angustura recebe o Afluente Grande e aí suas águas se avolumam e sua correnteza aumenta chegando ao rio Paraíba com muita força. Na época das chuvas de verão fica muito maior e traz consigo galhadas e sujeiras desde os lados de Cataguases. Mas a meninada não está nem aí. Parou de chover é hora de ir para a beira do rio. Sempre foi assim. Ah! Já houve casos de morte por afogamento por ali: há três anos o Zezinho filho do seu Pompeu se afogou com o pé preso em um tronco de sibipiruna. Foi uma tragédia, mas logo se esqueceram disto e o Aventureiro continuou a ser a grande diversão da turma.


O Foca ama aquele ribeirão. Na verdade, com a turma, quase não vai lá, porém sozinho vive sentado às margens do Aventureiro. O rio o faz sonhar e leva em suas águas suas mágoas e frustrações. O rio tem a capacidade de fazer o Foca imaginar que ele é um galã de novela e sua timidez, que o afasta das garotas, parece que ali se transforma em coragem e, porque não dizer, charme. À beira do córrego, sozinho, Raulino é rei! Por amar tanto o rio o moleque desenvolveu uma habilidade ímpar. Tem um fôlego, desculpe, de foca! Ninguém sabe disto, pois em grupo sequer entra na água, mas na calma da solidão treina bastante a submersão e se considera o melhor mergulhador da zona. Mas, para que serve isto? Não tem condições para jogar futebol e violão nunca tocou... Mergulhar muito é algo que não lhe traz orgulho. É só um segredo seu.


Naquele entardecer o pessoal estava danado, ensandecido. Passaram pela casa do seu Bráulio e abriram o portão deixando os carneiros escaparem para a baixada, na margem do riacho desmancharam o espinhel do seu Sebastião e foram aprontando até chegar ao local onde a água, empoçada, fazia quase que uma lagoa. Ensandecido estava o Rui e voltou sua atenção para o Foca. Pronto. Desgraça feita. Ah! Se arrependimento matasse! O Foca estava “frito”. O Rui não o deixava em paz. Primeiro quis que ele tirasse a camiseta e, como se negasse a isto, aos berros, começou a dizer que ele tinha peitos de mulher. Maldito. Que vergonha! Roseli, a loirinha, de longe observava e ria. Ódio. “Vou matar o cachorro.” Então passou a mão em sua bunda e aí ele quis reagir, mas o moleque, ágil, escapou de suas mãos subiu nas pedras e mergulhou no riacho bem onde faz a curva. Raulino ficou ali sentado sentindo amargo na boca e lágrimas nos olhos. Humilhado e cego de raiva queria matar o algoz.


Não tardou e a chuva despencou do céu com força. Em um instante o Aventureiro começou a encher com as águas que desciam dos morros e a garotada se preparou para voltar para casa. Começava a ficar perigoso. Raios iluminavam os céus e o barulho dos trovões que se sucediam impedia até que se pudesse conversar. Então se notou a falta do Rui. Foi a Roseli quem perguntou por ele. Todos se espantaram. “Cadê o Rui”? Correram para a curva do Aventureiro e puderam ver o menino quase se afogando com uma das pernas presas em alguma coisa no fundo das águas. Cada vez que uma pequena onda se formava em virtude da chuva, pronto, ele bebia água. Desespero estampado nos olhos!Sensação de morte eminente... Ninguém podia ajudá-lo!


O Foca viu o moleque lá no meio do córrego e teve uma dúbia sensação de desprezo e apreensão. Sabia que talvez ali fosse o único capaz de salvá-lo pela sua habilidade no mergulho, seu segredo tão bem guardado. No entanto surgia no recôndito de seu ser um sentimento de vingança que, aos poucos, parecia tomar-lhe todo o corpo. Agora poderia concretizar aquele desejo que ainda há pouco lhe ocorrera: ver o “cachorro” morrer!Os relâmpagos iluminaram o rosto de Rui e, por um instante, seus olhos encontraram os do Raulino e o seu clamor mudo e desesperado ficaram fixados nas retinas do Foca. Como um raio o gordo se atirou no ribeirão e, mergulhando, se aproximou da perna presa do garoto. Águas turvas o impediam de enxergar exatamente o local que prendia aquela perna. Segurando o fôlego desceu a mão pela bunda do Rui e, na continuidade do membro, encontrou o galho de árvore que o segurava. Quase não suportando mais a pressão que sentia no peito, num último esforço, conseguiu soltá-lo e subiram abraçados para a superfície, rostos colados, corpos se entrelaçando. Então as lágrimas dos meninos se misturaram e, com as gotas da chuva, pratas derretidas, testemunhas mudas de uma atitude única, se espalharam em direção ao Paraíba do Sul...


(*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras

bottom of page