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A Sílfide


Como de costume, todas as tardes, Floriano, em mangas de camisa, se postava diante da janela que dava para a ladeira e ficava a observar o movimento da rua: os estivadores que subiam do cais só de calção e chinelos e paravam no bar da esquina, as beatas que se dirigiam com seus véus negros para a igreja no alto da colina e as crianças que brincavam pelas calçadas. O homem, magro, maduro, optara por viver ali, naquele canto de mundo. O câncer de próstata diagnosticado há pouco tempo e tratado com cirurgia e injeções de hormônios lhe trouxeram um certo amargor e sensação de impotência. No lusco fusco da tarde fazia-lhe bem o painel visto de sua janela e o ruído do mar e dos trapiches, trazido pelo vento, era música a seus ouvidos. Mas, além de tudo, Floriano esperava pela garota de bicicleta que descia devagar pelo caminho de pedras com os cabelos a esvoaçar ao sabor do vento, magra e esguia, vestida com jeans e tênis branco. Uma sílfide. E ela vinha todos os dias ao cair do sol e parava bem em frente à janela, sacudia as madeixas encaracoladas, olhava para ele e através dele ... Seu olhar era como um convite para reviver momentos doces e prazerosos de sua juventude; lembrar-se da juventude era bálsamo para Floriano: exímio violonista, bom cantor, moreno estilo galã latino, arrebatava os corações das moçoilas de sua época. No entanto, casou cedo e, então, começou seu sofrimento. A esposa estéril e doentia não pode lhe dar filhos. Na rua procurou algumas amantes, mas infelizmente não se adaptou a nenhuma. Eram mulheres mais interessadas em seu bom salário de oficial de justiça o que o levou ao ato descontrolado da agressão que o conduziu à prisão. Ao sair em liberdade procurou o isolamento. O cais parecia lhe dar vida. O barulho das ondas, o cheiro dos peixes misturado com o do óleo das barcaças, o falatório dos marinheiros e pescadores, o vai e vem das prostitutas ganhando a vida, tudo lhe dava a sensação de estar vivendo e isto, para ele, era essencial. Na verdade, pela manhã, costumava andar à beira mar e ”viajava” em seus pensamentos para lugares distantes e paradisíacos. Após longa caminhada parava no bar da esquina para tomar um pingado com pão e manteiga e se permitia um dedo de prosa com o turco, dono do boteco. E o turco lhe punha a par das notícias do lugar: contava-lhe com detalhes sobre a vida de cada um dos moradores daquelas redondezas, os que eram gente boa e os malandros, as mulheres que traiam os maridos, os moleques que já trilhavam o caminho do banditismo, as prostitutas e suas brigas, os marinheiros e os estivadores com suas lutas ... Contava - lhe também, sobre a garota da bicicleta, filha de gente da elite, que morava em bairro elegante mas gostava de se divertir com os marinheiros e estivadores, escolhendo entre eles os mais fortes e suados para se deitar nos trapiches ou mesmo na areia fazendo sexo misturado com cheiro de suor, peixe e cachaça.


- Estranho - dizia Floriano - por que uma moça fina (podia se notar!) iria gostar deste tipo de vida? Seria uma pervertida? Teria algum complexo, algum problema? Floriano não sabia ao certo, mas é claro que esta informação dada pelo turco lhe trazia enorme curiosidade e também um enorme desejo que consumia todo o seu ser. À noite, na alcova, o homem tinha sonhos libidinosos com a garota e acordava pela madrugada banhado de suor e com a sensação de ereção do membro com orgasmos sucessivos; pensava em provar de forma concreta esta sensação e sentia que de alguma forma isto podia lhe fazer muito mal.

Em algumas noites saía de mansinho e de longe, escondido pelas dunas, espionava a menina. A luz bruxuleante da lamparina no trapiche transformava em sombras os movimentos do casal e Floriano, com o amargo gosto da revolta, sentia por aquela mulher um ódio tresloucado. Às vezes, no entanto, seus sentimentos eram de carinho e amor incontido.


Naquele anoitecer viu a garota passar e sentiu a inexplicável sensação de desejo, ódio, prazer e amor. Esperou a noite chegar, o movimento da ladeira arrefecer e, então, se vestiu e saiu de casa devagar, passo a passo, sentindo o friozinho da brisa marítima se misturar com o calafrio de suas veias. Passou pelo turco que subia do cais, mas mal o cumprimentou, na verdade, nem o viu, mergulhado que estava em seus devaneios. Os pés na areia grossa emitiam um som que o atordoava e, pela primeira vez, sentiu-se cansado, quase sem fôlego, atravessando as dunas. Encontrou jogada na areia a bicicleta e viu no trapiche próximo as sombras que o atormentavam. Aproximou-se mais e ficou ali por muito tempo ...


Pela manhã não se lembrava de como voltara para casa. Vagamente se recordava de ter levantado a bicicleta da areia e a encostado em uma duna. Estava confuso e parecia ter ouvido gritos, mas não sabia se fora um pesadelo. Abriu a janela, viu o carro da polícia na esquina e o turco apontando para sua casa, sentou-se na cama e seus sapatos estavam sujos de sangue.


A porta se abriu e o policial entrou com as algemas na mão. Floriano, quase letárgico, estendeu os braços porque já sabia o que ia acontecer.


(*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras

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