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O velho jequitibá


Estava ali há mais de um século. Possivelmente amparou em sua sombra os índios coroados quando caçavam a anta e a capivara abundantes naquelas matas; aliás, deve aos índios o seu nome: Jequitibá em tupi significa “gigante da Floresta”. Gigante mesmo! Quase 30 metros de altura e um tronco tão grosso que não podia ser abraçado. O velho jequitibá no transcorrer de sua vida assistiu a muitas coisas. Viu, enquanto em seus galhos tucanos e araras azuis repousavam, a chegada da estrada de ferro sorocabana abrindo a mata virgem, a locomotiva resfolegando em fumaça e os homens abrindo o picadão com as foices e enxadas, viu com tristeza infinita as serrarias se instalando e as perobas e outras árvores nobres sendo cortadas e transformadas, da noite para o dia, em dormentes e tábuas, viu casas sendo construídas, índios sendo expulsos, animais sendo aprisionados ou mortos.... Viu, enfim, que a vida mudara. Não era mais a mesma. Até o clima foi se transformando através do tempo: antes com estações bem definidas agora com inverno misturado com verão, frio com calor, chuva com seca, tudo em uma bagunça só! Lembrar do passado talvez fosse o melhor.... Uma vez com alegria viu o joão de barro construir em seu galho mais forte a sua casinha, o seu ninho, e durante muito tempo viu nascer, crescer e morrer os bichinhos da floresta. Emocionado viu tudo isto!

Nos últimos tempos tinha ficado praticamente sozinho. Ereto no meio do parque se conformava em servir de sombra para algum trabalhador mais cansado. Não via mais os pássaros mas ouvia a algazarra das crianças que brincavam a sua volta e isto mitigava de algum modo sua dor e sua saudade. Até, apesar da dor, ficou feliz quando um casal enamorado desenhou com um canivete em seu tronco um coração e a frase “amor eterno” pois o amor para ele era fundamental. Amava a seu modo a natureza e toda a criação, amava os homens na figura daquelas crianças inocentes que ali brincavam, amava até as ruas asfaltadas, as casas de pedras e as piscinas nos quintais que refletiam o sol dando a ele a sensação da vida. Como todo jequitibá que se preze de vez em quando soltava suas folhas para se recompor e elas, tocadas pelo vento, se espalhavam pelo ar levando além dos muros o perfume e os sinais da natureza viva; sim, levavam a todos a certeza da vida!

O velho jequitibá, no entanto, sem saber, trazia transtornos: suas folhas entupiam calhas, sujavam calçadas e piscinas e exigiam que, ao redor, os humanos sempre estivessem a limpar. E isto irritava profundamente algumas pessoas.

Em uma noite fria e escura de inverno o jequitibá recebeu uma visita. Percebeu que algo estranho estava acontecendo e algo estava sendo injetado em sua seiva. O “Tordon” injetado vai consumindo as energias da velha árvore e assim, aos poucos, com sofrimento atroz, ela vai morrendo. Pronto! Tudo consumado. O velho jequitibá que viu os índios coroados, que assistiu à chegada da estrada de ferro, que vivenciou o desenvolvimento da cidade secou, morreu! Seu tronco foi picado pela moto serra para servir de lenha para o homem e só a natureza entristecida viu queimando um coração com os dizeres: “ amor eterno”.


(*) O autor é médico e membro da Academia Venceslauense de Letras

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