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Uma quase tragédia


Era a mais nova de uma família de 7 filhos, chegou após dois meninos e, então, foi muito paparicada por ser do sexo feminino.


Miúda, magrela, olhos vivos, cabelos lisos e escassos, na companhia de vários irmãos e de uma mãe que passava os dias cantando músicas folclóricas portuguesas, muito cedo desatou a falar; falava sobre tudo o que via, explicava tudo que entendia e, curiosa, perguntava sobre tudo o que lhe chamava a atenção. A mamãe dizia que ela engolira uma vitrola ao nascer.


Teve o privilégio de ser mimada pelas irmãs, creio que devido à diferença de idade; discutiam para ver quem lhe daria banho, quem pentearia seus poucos cabelinhos, quem a faria dormir balançando a rede no alpendre da casa. Os meninos contribuíram para a sua habilidade em correr, subir em árvores e brincar de “pega-pega”. Brincadeiras de meninos, ralhava a mãe.


Uma infância feliz, de pés no chão, muito espaço e muita liberdade. A convivência com os irmãos lhe assegurava atividades saudáveis pautadas em amor, respeito e muito carinho.


Não havia escola, então a vida transcorria mesclando o trabalho dos filhos mais velhos na lavoura ajudando o pai e a diversão que não faltava nesse espaço privilegiado, natural e seguro. As lembranças desse tempo são poucas mas a certeza de que foi muito feliz é inquestionável.


Mas, nem tudo são flores na vida. Um dia, brincando como sempre, subiu em um baú de madeira, cuja tampa abaulada era contornada por um filete de lata para garantir a inteireza da peça. Tentou subir, mas sendo pequena, a altura do baú era um obstáculo considerável. Agarrou-se à borda e forçou o peso para erguer as magras perninhas e lograr êxito na subida. A tampa, que não estava fixada, virou e a borda de lata atingiu, não se sabe como, a língua que, como sempre estava para fora, porque cantarolava.


A cantiga foi substituída por um choro dolorido enquanto o sangue escorria pelo queixo e pelo vestidinho de chita estampado. Todos os que estavam por perto correram tentando socorrê-la. Nem a mãe conseguia avaliar a gravidade devido ao sangue abundante, mas a preocupação foi maior porque a criança não conseguia falar: dizem que a língua pendurava-se para fora da boca.


Moravam distante e a única forma de chegarem até a cidade – Presidente Venceslau – era utilizando-se da jardineira que só trafegava em dias e horários fixos. O pai apelando para a grande amizade conseguiu que a jardineira se deslocasse até o Hospital Álvaro Coelho para que a pequena tivesse cuidados médicos. Não se sabe como mas guardou na memória a escadaria vermelha e os pilares de entrada do hospital, o que não condizia com sua pouca idade.


A preocupação com o ferimento e a fila do atendimento, somaram-se ao pavor da pobre mãe de que a articulação das palavras pudesse ter sido prejudicada. Logo ela, que gostava tanto de falar, lamentava a mãe. Consulta, muito choro, muita preocupação, demora, demora, demora, enfim, o médico diz que graças aos dentinhos, ainda pequenos e espaçados, o ferimento não fora mais sério, a língua ficara presa apenas por um fiapo do lado direito e pelo freio que se colocou entre os dentes.


Graças a Nossa Senhora de Fátima, segundo a piedosa mãe, a caçula continuaria falando, mas os pontos, a inflamação e as dores potencializaram as birras que foram alimentadas pelos mimos dos irmãos: Coitadinha, tão pequenininha! Tá doendo?


Os pontos mal dados deixaram uma cicatriz bem visível mas sem nenhum prejuízo à fala. Durante muito tempo, ingenuamente, teve pavor de que por alguma razão, a cicatriz infeccionasse e perdesse parte da língua. Que bom que nada demais aconteceu; fazia e faz bom uso de sua capacidade de falar, imprescindível para o desempenho de sua vocação profissional: professora! Virou piada pronta entre os irmãos e amigos: “Como fala essa mulher! Imagine se não tivesse perdido parte da língua!”


(*) Aldora Maia Veríssimo – Presidente da AVL

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